sábado, 28 de fevereiro de 2009

Aqui, agora


.O espelho separa a imagem do reflexo. Eu não sei qual sou. Talvez a que fita ambas, capaz de resgatar a que poderia ter sido e a que me tornaria.

Pensei ter conhecido toda uma raça após haver visto um único membro. Mesmo mestres, crianças, homens. Todos eram iguais ao primeiro deles que havia visto. Ao longo dos anos, reduzi a vida ao que estereotipei sem notar que não há sequer um momento igual – quem dirá gente ou emoções. Distante do presente, escondida em conceitos passados projetados na idéia de felicidade no futuro, eu ensaio o viver que nunca é, que jamais ocorre no agora. Uma pena. A vida passa e não vejo. Onde anda esta tal vida ou mesmo eu mesma que teoricamente deveria estar vivendo-a?

Com o olhar firme sobre uma pessoa que sinto saudades, encontro resposta. Hoje eu sei que fui cruelmente abandonada. Nem mesmo mulher, ainda adolescente, eu fui deixada para trás. Nem sequer fui criança porque tive medo de ser espontânea, quis crescer logo e ser gente grande. E chata. Era precoce, pensava ganhar tempo, ao passo que me perdia de mim. Meus sonhos dilacerados em troca de uma realidade que eu não comprei, mas paguei caro ao negar o humanismo prático que defendi intelectualmente.

Golpes? Nem mesmo os de sorte

Hoje estamos frente a frente, a que abandonou e a abandonada vitimada que não se tornou quem poderia ser. Mas será que deixo de ser por não manifestar quem sou? Talvez a única coisa que ocorra é uma frustração que alimenta uma insatisfação constante que me remete a comentários ocasionais sobre o que amava ou àqueles que amei e deixei partir. Aliás, se realmente me amasse, eu não teria partido de mim! Por isso implorei por amor e negociei amores mesquinhos. Faltava meu amor por mim. Vergonhoso. Que tipo de gente faz isso consigo? Gentinha.

Vivo trancada no silêncio de quem não compartilha, observadora muda de conteúdo, falante de amenidades. Covarde. Inventei um manual, incompatível com a vida, baseada em experiências passadas. A existência faz chacota das minhas teses. Toda teoria vale um único instante. A vida não se repete. Sou eu a repetitiva, repetente do Samsara, a que insiste em aplicar o passado no que vivo agora. Bobagem! Isso demonstra que quero enlatar a vida, controlá-la para que não tenha surpresas, ou frustrações. Sangro pelas minhas desistências, desisti da Patrícia. Muitas de mim morreram, poucas sobreviveram. Ainda resta a esperança de começar a viver.

Então deparo com uma mãe que criou filhos sozinha e vejo a força de quem se apresenta; famílias afastadas que resistem à separação permanecendo unidas em adversidade constante; mulheres grávidas que desabrocham a vida com sementes de gente que plantarão no mundo. Perceber a expressão vital implica senti-la, mesmo quando existe dor. Fugir disso, desde o desconforto de uma postura de ioga até o medo de se apaixonar, reduz minha trajetória que percorrida anestesiada me protege de tudo. Pareço forte, mas somente sou apática. Não sinto nenhum golpe. Nem mesmo os de sorte. Força que nada. Fuga!

Chega de perambular pelo que ocorreu ou pelas suposições do futuro! A especulação é a pista da ausência no presente. Um basta às recordações que não vivi, às expectativas doentias pelo que poderá nunca chegar. Como uma criança que não tem referência e se entrega; como um sábio que admite o controle que não exercemos sobre a vida, eu quero o agora. Aqui todas as possibilidades de mim. Quero coragem para externar quem sou, a bem-aventurança de ser feliz sem filosofia conceitual, na prática perfeitamente imperfeita do ser humano que sou.

.Patrícia Varella.

Quando você não está


Na sua ausência, me perco na liberdade que só a solidão pode oferecer. Dona de meus próprios domínios, sem você, deixo nascer a tirana que habita em mim

Você acaba de me dar um beijo e sair.É domingo e faz frio lá fora. Dia ideal para ser perdido entre chamegos, afagos, mimos, xícaras de café e, maistarde, taças de vinho. Mas não esse. Você precisa sair e vai demorar para voltar. E tá tudo bem porque, com você longe de mim,posso me entregar à leitura do jornal sem ser interrompida para responder se lembrei de pagar a conta de luz na sexta ou se pretendo ir à Cobasi comprar a ração dos cachorros – essa, mais uma imposição do que uma pergunta. Embora não pretenda ir, digo que vou para poder voltar ao jornalmais rapidamente. Tá tudo bem, porque é com você longe de mim que posso fazer um pouco mais de café sem ter que obedecer ao comando de desviar para ir apagar a luz do quarto que, tenho certeza, quem acendeu foi você e não eu. E posso, quando bem entender, ligar a TV e deixaro volume alto, mesmo que eu decida continuar na sala lendo o jornal: você não está por perto para fazer bico, para pedir que eu levante e abaixe o som ou, em casos extremos, para que eu simplesmente desligue o aparelho. Posso inclusive escolher deixar a TV desligada, por minha própria vontade, mas ligar o rádio para saber mais a respeito dos jogos da tarde; sem você por perto, não tem ninguém para reclamar de minhas manias.

Ditadura
Aliás, com você longe de mim, posso gritar para que as cachorras, esses dois quadrúpedes hiperativos que moram aqui, nem pensem em se aproximar do meu café ou do meu jornal porque agora sou eu quem controla essa área, sou dona exclusiva de meus domínios. Com você longe de mim, nasce a ditadura, morre a democracia e revela-se a tirana que habita em mim. Pelo menos sob o ponto de vista canino; ao meu comando autoritário, as duas cadelas imediatamente emitem um som de súplica e saem à sua procura, em busca de proteção; elas sabem que o papel do “policial ruim” é meu. Mas, naturalmente, voltam com o rabo entre as pernas porque, finalmente, perceberam o que eu já sei há quase uma hora: que você não está. Então, derrotadas, simplesmente deitam à espera do seu retorno. E nem dão bola para meu estado de espírito. Porque é quando você não está que posso deixar o cabelo preso como bem entender: você gosta dele solto, para poder mexer, bagunçar, despentear. Você tem essa mania de ficar com a mão no meu cabelo. Então, a primeira coisa que faço quando o portão da garagem se fecha é pegar o elástico e prender bem forte, quase uma provocação. Mas aí lembro que é uma provocação vã, porque você não está. Só que também lembro que, com você longe de mim, posso colocar aquela playlist que já tá gasta e que você não agüenta mais. E posso ficar deitada, olhando o teto e pensando na vida, sem ter que ir ver se a água quente já voltou. Com você longe de mim posso navegar pela internet à vontade, sem ter que, bem na hora que finalmente encontro a informação que procurava, contar como foi a visita que fiz à minha irmã, como estavam as crianças, como foi a festa ontem.

Cachorros no sofá

Com você longe de mim me perco nessa liberdade que só a solidão é capaz de oferecer. E então aumento o som, pego um livro e, sem que você veja, autorizo as cachorras a subirem no sofá, atitude que deixaria você muito feliz, porque você ama ter as duas por perto, ama ver o sofá cheio de pêlos, ama me ouvir mandar elas descerem. Mas você não está e eu, quando você não está, deixo as duas subirem. É uma provocação, mais uma. Porque quando você não está não existe o risco de ser parada no meio da sala, enquanto estou indo colocar mais café na xícara, com aquele abraço apertado e demorado, sempre cheio de más intenções. Quando você não está, não existe a possibilidade de ser tirada de meu cochilo com um beijo molhado na boca. Também não tem quem, sem aviso prévio, pegue meu pé para fazer massagem, ou quem me ofereça torrada com queijo e geléia no meio da manhã, me pergunte sobre o que estou lendo e queira ouvir a explicação, mesmo que seja sobre o assunto mais chato do mundo. Sem você por perto, não tem quem se interesse por minhas histórias cotidianas, quem ria de minhas piadas tolas, quem converse com as cachorras como se elas fossem crianças de 5 anos só para meu entretenimento. Quando você não está não tenho com quem comentar um trecho do livro a respeito do Almodóvar que li ontem, não tenho por que fazer um pouco mais de café ou para quem ir buscar um Yakult na geladeira. Quando você não está, falta um pouco de mim, falta toda a graça, falta metade da vida: quando você não está, parte de mim também vai embora. Então, quando ouço o portão da garagem abrir e vejo as cachorras correrem em euforia para recebê-la, sei que tudo está prestes a mudar. É quando você volta que sou mais feliz e posso, finalmente, soltar o cabelo.

.Milly Lacombe.

Há muito mais entre o amor e o ciúme do que uma simples traição...


Catherine Millet gostava de se entregar aos homens. Teve muitos, principalmente em grupos, com a conivência de seu marido. Ela publicou sua experiência num best-seller chamado: A Vida Sexual de Catherine M., em 2001. Já o esperado sucessor desse relato picante foi surpreendente: chama-se Dia de Sofrimento (no Brasil, só em 2009) e narra as dores que sentia, consumida pela angústia da descoberta dos encontros do marido com suas sucessivas amantes. Não se trata de hipocrisia da parte dela nem de cegueira relativa a seus próprios atos, ela acredita que “assumir uma sexualidade muito livre não nos impede de cair na armadilha assustadora do ciúme e não nos protege de antemão contra a dor que a acompanha”.

O ciúme, como bem o prova Catherine, não tem nada a ver com atos nem fatos, faz parte do amor, é fruto das nossas inseguranças mais triviais. Num ataque de ciúme, ficamos obcecados, privados do controle, porque quem dirige a cena é o desespero. A vida perde completamente o sentido, só nos interessa saber se aquilo aconteceu, com quem, quantas vezes, onde. Quanto mais nos aproximamos da mórbida descrição da cena trágica, mais nos movemos em sua direção.

O amor que nos é dedicado faz parte das nossas posses e cuidamos dele como da própria pele! Por isso, se o perdemos, só nos ocorre que ele está nas mãos de outra pessoa, não pode simplesmente desaparecer. Na imagem daquela pessoa que seria o novo alvo desse amor, que antes era nosso, buscaremos nos mirar. O que ela tem que eu não tenho?

Objeto de desejo
Mas não é só disso que se nutre essa possessão: a fidelidade não é isenta de tentações, estas se traduzem em fantasias, sonhos eróticos, não necessariamente em atos. Freud explicava que a falta de intimidade com essas tentações, quando não estamos dispostos a admiti-las, produz o aspecto projetivo do ciúme. São esses pensamentos que se amontoam na porta – quando não é admitida sua entrada – que produzem o ciúme projetado, onde os próprios desejos são atribuídos, quer como feitos ou fantasias, ao companheiro. É ele que leva as culpas dos desejos que não admitimos sentir. Desconfie do ciumento: é ele quem está de olho na cerca!

Há ainda outro elemento que compõe o estado de espírito que nos leva a vasculhar bolsos, celulares, e-mails, Orkuts, a travar diálogos detetivescos com amigos. É uma parte mais difícil de explicar: o aspecto homossexual do ciúme entre os heterossexuais. As insistentes indagações na verdade são em torno da pessoa com quem estaríamos sendo traídos, pois ela nos fascina, ela é o objeto de desejo. É como ela que quero ser quando crescer! Sempre brinco com aquele a quem amo a respeito disso, pois nunca coincidimos em nossos interesses: as mulheres de quem eu fico ciumenta nunca são aquelas que ele acha atraentes, são as que interessam a mim! É nelas que vejo a mulher de verdade que nunca saberei ser e é nele que projeto minha admiração e meu desejo por elas. Como se vê, há muito mais entre o amor e o ciúme do que uma simples traição...

.Diana Corso.

Fim de feira






Mulher Melancia. Mulher Morango. Mulher Jaca. A feira é completa e variada. O feirante capricha nas ofertas: paga a bunda, leva o peito, arremata a coxa. Chacoalha tudo. Mulher para comer aos pedaços. Raw food. Aceitamos cartão de crédito!

O fenômeno das mulheres hortifrúti invadiu a cena alimentar brasileira. De costas, para quem não viu. Mulheres-suporte remexem seu bumbum-celebridade com entusiasmo nunca visto. No ponto alto da performance, ela – a bunda – é quem está de frente para a plateia. Olhos e boca, peitos e barriga, em geral importantes elementos na composição dos espetáculos rebolativos, aqui se acanham e cedem lugar à protagonista. Se ainda restava alguma dúvida, o funk nos joga na cara: a bunda é o poder!

“Onde este mundo vai parar?” “Imaginem: chamar a mulher de filé!” “Que horror: usar o corpo desse jeito!” “Só podia ser coisa do funk!” Pois eu acho que Mr. Catra, ao passar o cartão de crédito no bumbum da Mulher Filé, está dando uma imensa contribuição às reflexões sobre o projeto de feminilidade propagado pela mídia contemporânea. Afinal, essa imagem sintetiza, como poucas, o ideal de consumo que sorvemos mensalmente nas páginas das revistas: o corpo turbinado, representação da mulher poderosa, em relação obscena com um cartão de crédito. Nada mais preciso.

Ou existe alguma dúvida de que o corpo saradão, sujeito a toda sorte de intervenções médicas e estéticas, é o que faz a roda da mídia feminina girar? A fronteira que separa o sucesso do fracasso? Por que os closes de pedaços de corpos erotizados, que se pretendem modelos, não nos choca nas páginas das revistas “chiques”? E encarar que o bumbum da Mulher Melancia seja objeto de desejo de tantas jovens nos parece curioso? Da mesma forma, não vejo muita diferença entre chamar a mulher de jaca ou filé e colocar uma modelo dentro de uma forma de brigadeiro para vender xampu. A não ser o fato de as primeiras serem produzidas pelos “excluídos” do funk e as segundas pelos “incluídos” da publicidade, com suas artimanhas discursivas tão mais sofisticadas.

A crueza do funk não deve ser vista como uma aberração, mas como um convite a entrarmos em contato com a realidade de que a construção da subjetividade via corpo sedutor ainda move o feminino no século 21. Não por acaso, no site das três maiores revistas femininas do país, a busca pela palavra-chave “corpo” produz cinco vezes mais ocorrências do que “mente”; 11 vezes mais ocorrências do que “política”; 23 vezes mais ocorrências do que “solidariedade”. Viva o banho de realidade da bunda do funk!


É nos peitos da Melão, no bumbum da Melancia e nas pernas da Jaca que muitas garotas têm se espelhado – várias daquelas que antes sonhavam com a magreza das modelos. Será que finalmente o padrão de beleza está ficando mais democrático? Infelizmente, os especialistas não pensam que seja isso, mas sim uma pura e simples razão de mercado. “Se o único padrão de beleza fosse a magreza, todo mundo só venderia produtos para emagrecer, mas, existindo vários padrões, você pode vender para engordar”, diz Everardo Rocha, professor da PUC-Rio e especialista em antropologia do consumo. Em outras palavras, os corpos estão sempre à venda. Seja o das modelos esqueléticas ou o das gostosas.

.vai quereer?

 
Ellas © 2008 Template by Exotic Mommie Illustration by Dapina