terça-feira, 10 de março de 2009

Hora da Faxina


A desordem do quarto – ou a desordem dos mundos – espelha e estampa a narrativa de cada um de nós

Resolvi arrumar minha prateleira. Comecei por uma pilha de coisas chatas acumuladas. Revistas, bilhetes, notas fiscais, contas, catálogos, DVDs, cartões, impressos, clippings encadernados, fotos, jornais etc. Por que deixo acumular? Ou talvez a pergunta seja: por que recebo tanta coisa que não pedi? Mas agora entrei na pilha, tenho que arrumar. Com duas assistentes, fui entrando no universo concreto daquilo que ficou para depois, direcionando o destino de cada camada. Em uma hora tive que pensar e sentir fragmentos de muitos meses.

Uma capa de revista com um assassinato que chocou o país deixou uma liga de aflição entre um pensamento e outro.

A conta gigante do telefone celular, que apesar de doer no bolso facilita meu trabalho com a minha principal ferramenta: a voz. Voz esta que me abandonou durante alguns meses que procederam o acidente que me deixou tetraplégica.

As minissaias preponderando nos catálogos de moda me autorizam a manter as pernas de fora. Então, de soslaio observo meu guarda-roupa repleto de lindas calças compridas que não uso há mais de cinco anos. Desconforto de novo! Por que mantê-las se não as uso mais? Será uma ilusão de que posso perder meu passado? Ou bloqueio de reviver momentos a cada calça? Mas elas continuam lá, ocupando um espaço importante, que deixa outras peças espremidas e amarrotadas. Será que também fazemos isso com as pessoas? Damos espaço para quem não tem mais protagonismo na nossa vida? Voltei os olhos para o catálogo de sainhas. Tudo bem que sentada na cadeira de rodas não dá para usar saias muito curtas, pois sobem. Ainda mais sendo vereadora em São Paulo, não fica muito adequado. Talvez se fosse vereadora em Trancoso... Já aprendi a conviver com isso.

Fora da ordem
O acomodamento das coisas aglomeradas tem um efeito viral, pois cada item guardado pode expor um novo foco de bagunça. Por isso, o lugar onde mais gosto de colocar os fragmentos da desordem é no lixo.

Agora, uma correspondência de uma agência de viagem faz bela propaganda de Punta Cana. Será que conseguirei ir? Meu pai no hospital, trabalho acumulado... Qual assistente vou levar? O Alfredo, meu namorado, vai querer ir? Quanto custa? Hum, sol, mar, praia, tudo de que preciso. E chega a vez da conta do cartão de crédito, que acaba fazendo meu sonho de férias virar uma conta mental sem fim.

Depois de algum tempo de arrumação, além de o espaço vazio, onde a pilha morava, aumentar meu campo de visão, algo internamente também se organiza. Um algo intangível que inaugura nova fase na vida mental.

Quando passeamos na cidade de São Paulo assistindo a seu crescimento desordenado ficamos mais intolerantes a nossa própria balbúrdia.

Saí para comer e fiquei observando se alguém mais no restaurante tinha expressão de quem acabou de fazer arrumação.

Alguns têm cara de que nunca arrumam; outros não param de arrumar e nunca vencem a baderna; tem também os exemplares que vivem em dia com o passado e nem passam pela confusão.

O momento da arrumação não tem a ver com fantasias ou ilusões mutáveis, a única evanescência desse tipo de faxina está no concreto, naquele sentimento que os impressos desencadeiam. A desordem do quarto – ou a desordem dos mundos – espelha e estampa a narrativa de cada um de nós.

.Mara Gabrilli.

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