terça-feira, 17 de março de 2009

A Infância e o Marquês de Sade



Segundo o senso comum, a infância é o período compreendido entre o nascimento e a adolescência, sendo esta última o ponto onde começam a surgir as primeiras experiências da vida do infante;segundo uma outra definição, infância é o começo da existência de alguma coisa, sendo assim, podemos considerar esta coisa também como a experiência e a aprendizagem, não necessariamente nesta ordem.

O dicionário Melhoramentos (1997, p.136) define criança como o “ser humano no período da infância, menino ou menina, infantil” e, infantil como próprio das crianças, ingênuo, inocente. Avançando um pouco em relação aos conceitos explicitados por este dicionário, temos: ingênuo como sinônimo de puro, natural, sem malicia, simples e fraco e, inocente como aquele que não tem culpa, que não causa mal, idiota, imbecil ou criança pequena (MELHORAMENTOS, 1997, p. 277-280) O que estes conceitos nos dizem?

A infância é o espaço destinado à aprendizagem, armazenamento de informações e conteúdos do mundo que cerca o infante e este, a partir do que lhe foi exposto passa a assimilar o que vem a ser o seu mundo. A infância não necessariamente uma idade cronológica. Tornando-se o espaço da imaturidade e erros, meios (ou não) da maturação e do torna-se dono de si, a infância vem a ser, num pensamento mais profundo sobre ela, o momento da vida sem razão de ser, obscura e sem conhecimento, assemelhando-se às teorias da tabula rasa e do quadro branco. Desprovido então deste conhecimento empírico, ou ainda não dispondo do mesmo devido à falta de atenção ao que lhe rodeia, a infância agrega a condição de ser afetado que nos acompanha pela falta de palavras, ausência de voz, é estar afetado e não conseguir extravasar essa situação.

Associando tal pensamento com Contos Proibidos do Marquês de Sade, podemos perceber os exemplos de Madeleine e Simone, esta a virginal esposa do Dr. Royer-Collard, que partindo da necessidade que o médico sentia em ter ao seu lado uma esposa, visto que o mesmo estava a ocupar um cargo de destaque, sendo um dos bem vistos de Napoleão, vê a sua infância acabar e sua educação não completada por causa do mesmo, e, tudo o que ela sabia era graças aos livros que lia no convento onde vivia e de onde foi arrancada com as bênçãos da Igreja e a aprovação da sociedade para ser violentada noite após noite; aquela, a lavadeira que teve sua infância vivida dentro de um hospício, com sua mãe cega, impossibilitada demonstrar à filha os perigos e verdades sobre o mundo real, o mundo fora dos muros do Hospício de Charenton, e seguindo o mesmo padrão de educação assimilado por Simone, Madeleine também foi iniciada ao mundo das letras por meio do Abade Coulmier, o que a fez libertar-se das amarras que o incultismo lhe reservava, tornando-se mediadora entre a escrita do Marquês de Sade e sua publicação, que era considerada como intransigente e teve sua infância interrompida por um capricho de outrem. Observando os dois exemplos, percebemos que a infância de ambas foi marcada pela clausura e limitações do saber, sendo libertas através da leitura e emancipadas pelos questionamentos, movidas pela curiosidade própria de quem busca respostas, a base material da educação.

A leitura, a aprendizagem, a captação do saber tem uma ação libertadora, mas tudo tem um preço: esta liberdade conquistada pode ser considerada como subversiva, causando incômodo e estorvo ao sistema, tal como a literatura libertina e libertária do Marquês de Sade, que ficou preso durante 27 anos pelo crime de escrever sobre o lado mais negro do ser humano, sendo caracterizado como um escritor que recria a realidade, ou seja, transforma em ficção a vida de toda uma sociedade. A culpa sempre vai ser de quem escreve, em imaginar cada história, mas também em saber que pessoas irão ler suas palavras, sendo elas influenciadoras diretas de seus escritos, contudo, os leitores também têm sua aprcela de culpa, deixando-se levar pelas escrituras.

A partir do momento em que Simone vê o seu esposo atormentado em silenciar o Marquês, ela passa a buscar os escritos do mesmo, e utilizando-se de tamanha sutileza, passa a ser mais uma ávida leitura e discípula do intransigente Marquês bem debaixo dos olhos de seu esposo. Ao decorrer da trama, percebe-se o interesse em manter a esposa no mesmo cotidiano e segurança estabelecido pelo convento em sua própria casa por parte do Dr. Royer-Collard, mal sabendo ele do processo de alforria que se estabelecia perante e invisível aos seus olhos, obtendo seu ápice no momento em que Simone vê no arquiteto contratado por seu esposo para decorar sua “gaiola dourada” a possibilidade de concretização de seus desejos e ensinamentos por parte do conto Justine e libertação de sua cômoda e monótona vida de casada: “há certo momento da vida que a menina deve separar a história dos livros e a prática na vida real”. Sai de cena a menina e entra em cena a mulher. Sai a infância de aprendizagem e entra em cena a maturidade e a experiência da idade adulta.

Madeleine, por sua vez, via na leitura dos contos, uma possibilidade de livrar-se um pouco de sua vida real: rodeada por loucos e vivendo uma infância não pautada ou regulamentada nos padrões impostos pela sociedade. Madeleine e sua vida foram consideradas pelo médico como um “galho podre” que poderia por a perder todo o seu trabalho, visto que a mesma era a responsável pela exportação dos contos do Marquês ao mundo fora dos muros de Charenton e também responsável pela perturbação causada por estes à sociedade francesa. No episódio do incêndio no hospício, Madeleine foi condenada pelo próprio médico à morte, pois nada era mais prático que o corte do galho ter como executor um alienado, que possibilitou ao médico o não sujar das mãos e instituir com isso a normalidade do local.

A domesticação dos corpos, o controle das mentes, o rigor da leitura é o que faz a educação tornar-se um ferramenta chave de dominação: assim como o médico condena Madeleine e o Marquês de Sade, assim também procede o professor aos seus pupilos – todo aquele que venha a se desviar do padrão estabelecido, ora pela LDB, ora pelo PPP da escola, ora pelas regras estabelecidas pelo próprio professor dentro de sua sala de aula deve ser castrado, cortado, lançado fora, pois dali não haverá frutificação, e ainda além disso, poderá ocorrer a infecção deste galho podre aos bons galhos.

Partindo do pressuposto que a escola é o espaço destinado à aprendizagem de infantes, no sentido discutido aqui: independente de idade cronológica, escola possui essa característica normalizadora e instrutoras dos fatos e dos seres inseridos nela, aplicando em seu dia-a-dia os princípios da hierarquia, vigilância e sanções: “a escola educa e disciplina”.

Como representado pelo Abade Coulmier, o educador age como pastor: ele exerce o poder superior sobre seu rebanho, agrega, conduz, assegura a salvação e se possível e necessário for, sacrifica-se por seu rebanho, mas em nenhum momento ele deixa de inserir no corpo de seu educando os signos e princípios básicos e influências diretas da cristandade, como obediência e virtude.

Como exposto pelo sacrifício dos loucos em repassarem entre si até chegar à Madeleine os versos que compunham o último conto do Marquês, a linguagem também é deturpada na medida em que é repassada por outros, nunca chegando ao seu destino tal como foi remetida.

“minha gloriosa prosa filtrada pela mente de insanos... possivelmente ela ficará até melhor”. Marquês de Sade

Admirável e digno também de ressalva é a gana em escrever por parte do Marquês, que contrapõe qualquer limite para tentar burlar os sistemas externos que tentam silenciá-lo, usando vinho, sangue e até suas fezes, para escrever, quando privado do papel e de penas (castigo imposto àqueles que não se encaixam aos padrões estabelecidos), declarando: “Minha escrita é involuntária, como os batimentos do meu coração. Minha ereção constante!”. O Marquês vê na escrita a única forma de exorcizar todos os demônios presos à sua mente e assim libertar-se.

Fidedigna à fama, a máxima “as palavras voam, mas permanecem quando escritas” é percebida no início do filme, quando há um comentário sobre os revolucionários que, depois de mortos, continuam a causar problemas. Sade não usou, nunca quis usar certo filtro que as “belas artes” costumam colocar sobre as representações dos nossos instintos.

A escrita, assim como a educação, é libertadora, e está inserida no mais diferente local: no fundo de um tinteiro e na ponta de uma pena.

A escrita e a educação é um constante desafio.

.Roberta Ribeiro.

1 comentários:

????? disse...

Show de bola essa postagem! Vc é fodaaa! hehehe
bjuss

 
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